Cada vez mais pessoas vivem em espaços urbanos. O Relatório das Cidades Mundiais 2022, da ONU Habitat, revela que esse índice passou de 25% em 1950 para mais de 50% em 2020 e a estimativa para as próximas cinco décadas é que ele chegue a 58%. O levantamento indica ainda que até 2070 o número de municípios em países de baixa renda aumentará em 76% enquanto que nas nações de renda alta e média-baixa essa elevação ficará em cerca de 20%. O estudo observa também que esse cenário mostra a urgência das localidades serem projetadas e gerenciadas de maneira que o seu crescimento futuro não sobrecarregue a infraestrutura, as áreas abertas e os serviços existentes — levando a uma expansão insustentável.
Nesse sentido, a questão que se sobressai é como acomodar esses novos indivíduos nas cidades de forma que eles tenham acesso a ambientes qualificados e suas residências fiquem próximas ao comércio, trabalho e lazer? Diante disso, o debate sobre o adensamento dos municípios volta a ganhar destaque nas políticas de desenvolvimento urbano e na idealização de empreendimentos imobiliários. Atualmente, localidades densas e compactas são vistas por diversos urbanistas e pesquisadores do assunto como fundamentais para a sustentabilidade e a evolução econômica das regiões, aponta artigo publicado no Vitruvius. O texto recorda que, no final da década de 1960, a escritora e ativista Jane Jacobs já alertava sobre os impactos negativos da baixa densidade nas cidades norte-americanas, com a dispersão das pessoas, a segregação de grupos mais pobres e a falta de vitalidade das ruas.
Esse olhar para os municípios ia na contramão do pensamento urbanístico da época e de tempos anteriores — quando os modelos ideais eram as Cidades-Jardim do planejador inglês Ebenezer Howard, no início dos anos 1900, e depois as localidades inspiradas pelo Modernismo de Le Corbusier, com a separação dos usos (residencial, comercial e industrial) e a alocação de grandes espaços entre os prédios, como detalha o coordenador do movimento Somos Cidade, Felipe Cavalcante, em artigo no Somos Cidade. Ele lembra que a disseminação dos automóveis e a melhoria da infraestrutura rodoviária, ocorridas no século 20, contribuíram para que as pessoas fossem viver cada vez mais longe dos centros urbanos, espraiando os municípios.
A opinião que se mantém ainda hoje em diferentes grupos sobre densidade está relacionada a uma realidade de mais de cem anos — quando as cidades enfrentavam as transformações da revolução industrial e os problemas da falta de condições sanitárias — e às experiências malsucedidas de adensamento realizadas por gestões públicas, assinala Cavalcante. Por isso, reforça ele, a densidade continua a “ser sinônimo de multidões, poluição, barulho, congestionamento, feiura, ausência de verde e falta de privacidade” para muitos integrantes da academia e da sociedade em geral. Essa percepção acaba não refletindo a situação das localidades contemporâneas e dificultando o atendimento das demandas atuais de seus moradores.
Mas, exatamente o que é densidade e por que ela é tão importante para os municípios? O arquiteto e urbanista Claudio Acioly Jr. explica no livro “Densidade Urbana e Gestão Urbana”, escrito em conjunto com o planejador urbano Forbes Davidson e lançado em 1998, que a densidade demográfica ou populacional representa a totalidade de indivíduos que reside em uma determinada área urbana, ou seja, a quantidade de habitantes por quilômetro quadrado ou por hectare. Há também a densidade construída, que expressa os metros quadrados de edificação existentes por hectare e a densidade habitacional ou residencial, que apresenta o número de unidades erguidas em uma zona urbana por hectare.
Acioly Jr., que é especializado na questão de moradia e urbanização de favelas e já atuou como gerente sênior da ONU Habitat no programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos e liderou vários projetos nesse setor em diversos países, complementa que há outros conceitos envolvidos com a densidade que são considerados no desenvolvimento das cidades, como os das densidades bruta e líquida. O primeiro indicador mede a quantidade de pessoas que vive em uma região específica dividida pela área total em hectares, incluindo no cálculo escolas, espaços públicos, ruas e ambientes verdes. Por sua vez, o segundo parâmetro é resultado do número de pessoas que reside em um bairro dividido pela área destinada estritamente para habitação.
Para Acioly Jr. e Davidson, a densidade é um referencial relevante para avaliar tecnicamente e financeiramente a distribuição das terras urbanas, infraestrutura e serviços públicos em uma região de moradia. Em sua obra, eles afirmam também que ela é um instrumento de apoio à formulação e à tomada de decisão por parte de planejadores, urbanistas, arquitetos e engenheiros no momento de definir como será a forma e a extensão de uma área da localidade.
As vantagens e desvantagens das altas e baixas densidades
Mais do que uma fórmula matemática que pode ser aplicada em qualquer contexto, diferentes padrões de densidade são identificados de um país para outro e, às vezes, dentro da mesma nação, como salienta artigo do Vitruvius. A pesquisa Density: Drivers, Dividends and Debates (Densidade: Drivers, Dividendos e Debates), do Urban Land Institute — organização sem fins lucrativos fundada em Chicago (EUA) —, avaliou esse indicador sob distintos aspectos, como ele vem sendo abordado em várias parte do mundo e o que cada modelo pode ensinar a outros municípios, como relata matéria do The City Fix Brasil.
O relatório traz diversos exemplos de configurações de localidades, como a Cidade do México que tem a maior densidade concentrada na sua região central, e Joanesburgo (África do Sul), que possui um desenho policêntrico, com as densidades mais elevadas distribuídas em diferentes áreas. Padrões esses que são, segundo o estudo, resultado da combinação de fatores geográficos, históricos, culturais, econômicos e políticos. O levantamento reúne ainda aspectos que podem tornar a densidade benéfica ou não para os lugares. O uso misto do solo, acesso ao transporte coletivo e um bom design urbano são elementos positivos para os municípios, assim como a coesão dos espaços, onde as necessidades sociais encontram as econômicas, ressalta a pesquisa.
Outros pontos indicados como “boa densidade” são a criação de ambientes públicos e abertos de qualidade para cidadãos de todas as faixas de renda e a utilização mais eficiente dos recursos naturais e do transporte coletivo. Por sua vez, quando mal planejada a densidade pode levar à constituição de locais isolados, que não contam com um sistema de mobilidade que atenda à quantidade de pessoas que moram em determinada região, e sem diversidade econômica e racial entre seus habitantes, gerando segregação. Engarrafamentos e a ausência de espaços ao ar livre são outras consequências negativas que podem surgir sem um projeto de adensamento adequado.
Com relação à comparação entre as baixas e altas densidades das cidades, Claudio Acioly Jr e Forbes Davidson frisam em seu livro que a primeira está, em geral, associada a residentes de poder financeiro mais elevado, a um número limitado de contatos sociais devido à tipologia da área, como é o caso do Plano Piloto de Brasília, e à oferta de mais lugares para recreação e melhor qualidade do ar. Enquanto que a segunda está ligada, muitas vezes, à baixa renda e a mais oportunidades de interação social e aos encontros casuais.
Os autores da obra informam ainda que as duas densidades possuem também suas desvantagens. No caso dos pontos pouco densos, os malefícios envolvem o desenvolvimento de bairros dispersos e com pouca conexão com os centros dos municípios. Além disso, por estarem isolados e contarem com amplas áreas verdes e grandes lotes, essas comunidades podem sofrer com questões de segurança e acabar estabelecendo ilhas cercadas por muros de proteção e separadas da malha urbana, como é verificado em regiões de classe média e alta do Rio de Janeiro e em São Paulo, aponta o livro. Já as áreas mais adensadas, segundo Acioly Jr e Davidson, podem conviver com situações de conflito desencadeadas pela “intensa disputa” por espaço, circulação e privacidade.
No que se trata dos aspectos benéficos das altas densidades, o artigo do Vitruvius destaca a otimização dos recursos para disponibilizar serviços públicos como transporte, saúde e sociais para uma quantidade maior de indivíduos. “Pensar em localidades dispersas de baixa densidade populacional para o Brasil, além de ser incoerente à lógica da sustentabilidade urbana, é um contrassenso à justiça social e ao acesso a uma cidade mais barata para todos”, pontua o texto. O estudo apresentado no site reforça que quanto maior a densidade habitacional, menor será o gasto com infraestrutura, moradia e manutenção dos serviços urbanos por habitante, assim como a área ocupada, a necessidade de deslocamento de carro e o impacto ambiental são reduzidos.
Um município com um desenho mais coeso, acrescenta o artigo, permite que as pessoas se desloquem a pé ou de bicicleta, melhorando o custo-benefício do transporte coletivo. Paris (França), Barcelona (Espanha), Nova York (EUA) e Buenos Aires (Argentina) são exemplos de lugares onde a densidade trouxe resultados positivos para a cidade e seus residentes.
Verticalização nem sempre significa adensamento
O desenvolvimento de localidades mais densas foi impulsionado pela possibilidade do crescimento vertical, como recorda artigo do instituto de pesquisa WRI Brasil. A invenção do elevador, analisa o texto, garantiu as condições para a edificação de arranha-céus que permitem concentrar um número considerável de cidadãos em uma superfície relativamente pequena do solo. Apesar de ser vista por especialistas em planejamento urbano como um caminho sem volta, a construção de prédios cada vez mais altos traz desafios para urbanistas e gestores públicos, como detalha reportagem veiculada no G1.
“A altura (dos edifícios) pode ajudar no aumento da concentração populacional em uma determinada região, respondendo às demandas por espaço e elevando a eficiência das redes de infraestrutura, que podem atender mais pessoas em caminhos mais curtos”, disse o arquiteto e urbanista Anthony Ling ao site de notícias. Porém, para viabilizar esse adensamento, o planejamento urbano é fundamental, complementou o 2.º vice-presidente do Secovi-SP, Claudio Bernardes. Ele frisa que é preciso ainda prever uma infraestrutura de transporte de massa, adequação das vias para pedestres e ciclistas, e a introdução de atividades que assegurem aos indivíduos morar, trabalhar e se divertir em uma mesma área.
No entanto, a verticalização e o adensamento nem sempre andam juntos. Empreendimentos muito altos, por exemplo, podem ter poucas unidades residenciais, com a densidade ficando abaixo do ideal e refletindo negativamente sobre a estrutura urbana existente, uma vez que o custo das prefeituras para instalar ônibus, coleta de lixo, saneamento e gás será o mesmo para um prédio com 30 ou 120 famílias.
Ling pondera também que o afastamento e o isolamento dos arranha-céus das calçadas e das construções do entorno para que a edificação tenha mais altura é outro elemento que pode transformar o processo de verticalização nocivo. “Tal regulação prejudica a caminhabilidade das ruas, dado que afasta as atividades dos prédios dos pedestres consumidores e quebra a continuidade das fachadas, fator importante da vida urbana e emulado nas lojas dos shoppings centers”, argumentou. Uma solução para isso, de acordo com ele, seria o fim das exigências de recuos ou afastamentos obrigatórios e dos limites de altura para novas construções.
No Brasil, uma questão que afetou a verticalização foi a introdução da fórmula de Adiron, usada pela primeira vez em 1972 em São Paulo (SP), comenta o coordenador do Somos Cidade, Felipe Cavalcante, diretor da MATX, fundador e atual presidente de honra da ADIT — Associação para o Desenvolvimento Imobiliário e Turístico do Brasil. Ele explica que o mecanismo estabeleceu uma “proporção inversa entre o coeficiente de aproveitamento e a taxa de ocupação do solo, criando os paliteiros que vemos nas cidades, com grandes recuos frontais e laterais que têm o efeito colateral nefasto de acabar com a vida nas calçadas”. Cavalcante acrescenta que, além do adensamento, esse tipo de ocupação teve reflexos negativos na diversidade, já que a baixa ocupação do solo gera uma “série de edifícios semelhantes, aniquilando uma das fontes primárias da vitalidade urbana que é a diversidade das construções, o que gera uma padronização estética e socioeconômica que deixa a cidade estéril”.
O coordenador do Somos Cidade assinala que quanto mais adensada for uma localidade, menor será o consumo de áreas verdes e o impacto ambiental. Para ele, o futuro dos municípios é crescer para cima, mantendo o estoque de terras o mesmo e respondendo à demanda por novas moradias. “Quando expandimos para o lado, precisamos fazer maciços investimento em infraestrutura e, mesmo que os façamos, as pessoas que vão viver longe do Centro são as mais afetadas, ficando afastadas dos pontos de trabalho, das melhores opções de lazer e gastando expressiva parte do seu tempo em deslocamentos”, enfatiza Cavalcante.